Por José Rezende
A partir da escolha do Brasil como sede do IV Campeonato Mundial de Futebol, o sentimento de afirmação diante do mundo tomou conta dos brasileiros. Confundia-se futebol com pátria. Construiu-se o maior estádio do mundo, feito extraordinário da engenharia brasileira. Orgulho para todos nós.
Em 1949, conquistamos o campeonato sul-americano, aplicando grandes goleadas nos adversários, com exceção nas partidas diante do Chile (2 a 1) e do Paraguai. Contra esse último perdemos por 2 a 1 no último jogo, resultado que obrigou a realização de um jogo extra para decidir o título. Vencemos por 7 a 1.
No ano seguinte, na disputa das Taças Osvaldo Cruz e Rio Branco, respectivamente, com o Paraguai e o Uruguai fomos vencedores. A seleção reserva, com camisas azuis, ganhou dos paraguaios por 2 a 0, em São Januário, e a equipe titular, de camisas brancas, empatou por 3 a 3, no Pacaembu.
No sul-americano, o Uruguai se fez representar com o time praticamente reserva e perdeu por 5 a 1. Com os titulares disputaram a Copa Rio Branco, a poucos meses do Mundial. Perdemos por 4 a 3, no Pacaembu; ganhamos por 3 a 2, e conquistamos a Taça com a vitória por 1 a 0, em São Januário.
Vasco da Gama e São Paulo, principais equipes brasileiras com inúmeras conquistas na década de 40, formavam a base do elenco. Flávio Costa e Vicente Feola, respectivamente, técnico do Vasco e do São Paulo comandavam a seleção.
A preocupação da comissão técnica era com as seleções europeias. Precisávamos de jogadores que se impusessem com o físico, segundo Orlando “Pingo de Ouro” um dos convocados para o período preparatório:
“Naquela época, surgiu a ideia de que para ganhar campeonato, precisava-se de jogadores grandes, fortes. Trocaram a habilidade pela força. Alfredo II, lateral do Vasco, jogou até na ponta. Fui convocado e cortado. Nem treinei. Eles queriam jogadores fortes para jogar com os europeus”.
A euforia representada pelo “já ganhou” tomava conta da imprensa esportiva, dos políticos e dos torcedores, fatos constatados pelas declarações de Barbosa e do “mestre Ziza”:
Barbosa – “No campeonato mundial de 50, nós passamos o tempo todo concentrados no Joá. Era um lugar longe, o acesso não era fácil e nós ficávamos tranquilos. Para você ter uma ideia nós só lembrávamos que tínhamos que jogar, quando chegava o dia do jogo. Isso foi até o jogo contra a Espanha. Depois a coisa degringolou muito a contragosto do Flávio. O Flávio ficou sozinho nessa luta, porque depois do jogo contra a Espanha criou-se o clima do já ganhou. O já ganhou incentivou os uruguaios. Dali em diante, chegaram ao cúmulo de tirarem a gente de lá do Joá para São Januário. Tiraram a gente do céu e colocaram no inferno. Em São Januário, tinha filas e mais filas de ônibus com gente que só ia para olhar a cara da gente. Quando sentávamos à mesa para comer, ficávamos meio constrangidos, porque tinha gente de todos os lados nos olhando, falando, gesticulando. Um querendo saber uma coisa, outro querendo saber outra e nós, também, passamos a ser alvo dos políticos. Todos os candidatos queriam estar junto da gente, porque o Brasil ia ser campeão do mundo e eles queriam estar dentro da jogada. Esses fatos tiraram aquela unidade e aquela humildade que nós tínhamos quando estávamos lá, no Joá, tranquilinhos, fazendo nossas fogueiras, soltando nossos balões e nos distraindo”.
Zizinho – “São coisas que acontecem no futebol. Eu acredito se nós tivéssemos jogado uma segunda partida contra o Uruguai não teria acontecido a mesma coisa. O mesmo aconteceu com a Hungria, em 54, que era uma máquina.
Vocês, também, tiveram um pouco de culpa, porque foram montadas fotografias, com faixas do Brasil campeão do mundo. Na véspera do jogo nós passamos o dia todo assinando milhares de fotografias, sem termos um minuto de descanso. Houve desconcentração para uma partida de futebol, em São Januário. Ninguém teve mais tempo para nada. Aquela multidão lá dentro…
O Vasco não teve culpa de nada. A culpa foi de quem nos levou para lá. Num momento, eu comentei com o Rui, parece que nós já ganhamos o título. Vamos ter um adversário difícil. Não é contra uma seleção da Europa, é contra o Uruguai. Os uruguaios conhecem demais a gente.
No dia do jogo, nós fomos até retirados da sala de refeição, que acho ser uma hora sagrada para o jogador. Era uma época política e São Januário virou a sede nacional da política brasileira. Tiraram a gente da mesa para ouvir discurso do senhor Cristiano Machado e da comitiva dele, composta por senadores e deputados federais. Quando voltamos a sentar à mesa, tivemos que levantar novamente, porque chegou o Ademar de Barros, com a sua comitiva. Quer dizer, o jogo já não tinha mais valor algum. A coisa se tornou uma festa, em São Januário, antes da partida. Se tivéssemos continuado em São Conrado, seria concentração mesmo. Naquela época, pouca gente tinha automóvel. A Barra da Tijuca era um lugar deserto, onde os caras tomavam banhos nus na praia. Só tinha que ter medo dos aviões que davam rasantes em cima dos caras. Era uma Barra livre, mas difícil de chegar.
Eu tive medo da partida quando terminou o primeiro tempo, porque nós até podíamos ter goleado os uruguaios. Quando a gente passa um tempo dominando uma partida e o gol não sai, a gente sempre se assusta um pouco. Quando o gol do Friaça saiu, nós já não estávamos bem como no primeiro tempo. A partir dali não sei, houve um gelo no time, uma coisa incompreensível. Não vou responsabilizar ninguém, porque isso foi geral, embora tenham jogadores, ainda hoje, que foram responsabilizados demais. É o caso do Bigode, que até hoje sente na carne. Bigode é um sujeito, que vai a poucos lugares. Uma das poucas casas que ele frequenta é a minha e a do Ademir, porque ele sabe que lá em casa eu não vou deixar falar de futebol com ele, a não ser que ele queira. Mas, se houver uma conversa que não está agradando, eu corto. Não existe nenhum culpado numa equipe de futebol. Quem ganha são os onze, quem perde são os onze”.
A não ser o tropeço diante da Suíça (2 a 2), no Pacaembu, na fase de grupos, derrotamos facilmente o México, na estreia, por 4 a 0 e goleamos a Suécia por 7 a 1 e a Espanha por 6 a 1, no quadrangular final.
A Iugoslávia foi o adversário mais difícil, ainda na primeira fase. Só a vitória nos interessava, porque tínhamos um ponto perdido, enquanto a Iugoslávia derrotara o México e a Suíça.
Flávio Costa apelou para Zizinho jogar mesmo sentido a coxa. Foi o maior jogo da Copa e uma exibição de gala do “mestre”. Resultado: Brasil 2 a 0.
A prática nos mostrou que o foco das preocupações da comissão técnica estava errado. A 2ª Guerra Mundial terminara há poucos anos e o futebol europeu estava em fase de recuperação. A Itália, que seria uma grande força, sofreu grande golpe com a tragédia aérea sofrida pelo Torino, base da “Azurra”. O saudoso Luiz Mendes, com suas sábias palavras, alertava que o “inimigo” morava ao lado:
“Eu analisava a coisa com isenção. Era o mais jovem dos locutores esportivos nessa ocasião. A CBD, presidida pelo Dr. Mário Polo, que substituía o titular Dr. Rivadávia Correia que estava doente, nos reuniu com o Flávio Costa, técnico da seleção, para explicar sobre o quadrangular final. O Flávio havia escolhido a ordem dos jogos: primeiro contra a Espanha; segundo contra a Suécia; é o terceiro contra oUruguai. Éramos uns vinte cronistas na CBD. Discordei da ordem dos jogos, ponderando que o Uruguai jogara apenas uma partida na fase classificatória, quando goleou a Bolívia por 8 a 1 e nos conhecia muito bem. O Uruguai havia vencido o Brasil um mês antes do mundial pela Copa Rio Branco. Fui voto vencido.”
Barbosa e o gol que calou o Maracanã
“As jogadas uruguaias eram feitas explorando a velocidade do Gighia, para ele ir a linha de fundo e jogar para trás. No primeiro tempo, eu cortei umas duas bolas. Uma outra ele centrou mais para trás e o Miguez acertou a bola na trave. Eu estava chamando a atenção dos meus homens de área, que tinham que olhar aquilo, porque eu não podia estar saindo além da marca do pênalti. Chega o segundo tempo e continuam fazendo a mesma coisa. Tanto que na hora que saiu o primeiro gol, eu chamei a atenção, dizendo que eles só têm essa jogada. Se matar essa jogada, acabou. Não tem mais nada. Exatamente, no lance do gol ele veio e eu mais do que nunca estava olhando para ele e se o Schiafino ou Miguez estavam na área. E, realmente, os dois vinham e nessa ele me pegou no contrapé. Ele mesmo diz que chutou, porque o Bigode vinha correndo e ficou com medo de ser alcançado. Gighia mais se livrou da bola e deu sorte”.
Luiz Mendes e a narração do gol do título uruguaio
“O segundo gol Uruguai foi praticamente o vídeo tape do primeiro. Só que o segundo eliminou o centro para trás, com Schiafino entrando e tocando para dentro. No segundo a jogada se repetiu. O Bigode foi batido, o Ghiggia chegou no mesmo lugar, levantou a cabeça e o Barbosa que estava junto a trave fechando o ângulo, pensou que ele fosse repetir a jogada anterior, deu um passo para à direita e nesse momento ele deu o chute meio de bico e a bola entrou entre a perna esquerda do Barbosa, que estava indo para à direita e o poste. Eu descrevi o lance normalmente, como todos os locutores esportivos e disse: “Gol do Uruguai!”. Aí senti que o Brasil estava perdendo a copa do mundo e me perguntei: “Gol do Uruguai?” E, respondi: “Gol do Uruguai, senhores. Gol do Uruguai”.
São nove inflexões diferentes, como comprova a gravação que foi posta no programa “Na grande área” do Armando Nogueira. Quem tinha essa gravação era o Gerson Sabino, cronista esportivo mineiro, que possuía uma coleção maravilhosa de vídeos e áudios sobre transmissões esportivas. O Sabino compareceu a todas as copas do mundo, menos a de 98, porque faleceu antes. Eu tenho essa gravação, porque o Armando Nogueira me mandou.
Eu gritei o gol normalmente. Mas, diante daquele silêncio impressionante senti que estávamos perdendo a copa do mundo. Foi quando eu me perguntei: “Gol do Uruguai? Gol do Uruguai, senhores. Gol do Uruguai…Vejam só, gol do Uruguai…”E, assim, eu fui até a nona inflexão diferente. A decepção em cada uma delas retratada.
O estádio ficou num silêncio mortal, uma coisa impressionante. Dava-se para se ouvir a vibração do Obdúlio Varela, dos jogadores uruguaios festejando o título no centro do campo. Depois numa crônica que escrevi sobre esse fato eu coloquei: “foi a única vez em que se pode ouvir o silêncio.
No Rio de Janeiro, dois, três dias depois a gente andava na Av. Rio Branco e só se ouvia as buzinas, os motores dos lotações, dos carros, dos bondes que circulavam na galeria Cruzeiro, onde hoje é o edifício Avenida Central. Vozes humanas você não ouvia, todo mundo andava em silêncio”.
Há 65 anos não percebemos que o inimigo não vinha de longe, morava ao lado. Final: Uruguai 2 x Brasil 1. Assim, nasceu o Maracanazo, no dia 16 de julho de 1950.
- O Diário Carioca afirmava que o Brasil seria campeão
- Charges alusivas à Copa do Mundo de 1950
- Aproximadamente 200 mil torcedores lotaram o Maracanã na partida final
- Schiafino chuta de primeira, empatando a partida
- Ghiggia marca o gol a conquista do título mundial. Barbosa batido e Bigode com a mão na cabeça
- Jules Rimet entrega a Taça, que leva seu nome, ao capitão Obdúlio Varela
- Obdúlio abraça Ghiggia após a grande conquista
- Máspoli consola Zizinho, eleito o melhor jogador da Copa
- Máspoli consola o capitão brasileiro Augusto
- O repórter Jaime Moreira Filho acompanha a tristeza de Danilo
- As manchetes de alguns jornais após a Copa de 50
- Barbosa passou a vida inteira tentando se livrar do fantasma de 50
- O livro do jornalista Teixeire Heizer, presente no Maracanã, testemunhou o Maracanazo