Sílvio Barsetti, especial para o site da ABI
Textos brotam nas redes sociais a cada minuto, com relatos que se avolumam em detalhes e quase-confissões de histórias até então conhecidas em pequenos grupos ou já descoloridas na memória dos amigos. Tem sido assim o mês de julho de 2019, desde o dia da despedida de Rogério Daflon. Jornalista com passagem por várias redações de grandes jornais e revistas, mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Daflon não resistiu aos traumas sofridos em razão de um atropelamento na Rua Pinheiro Machado, em Laranjeiras, na noite do dia 7.
O velório de Rogério Daflon, na sede da Associação Brasileira de Imprensa ABI, à Rua Araújo Porto Alegre, 71 – centro do Rio de Janeiro, será nesta quinta (18), das 9h às 14h. O sepultamento se dará às 15 horas, no Cemitério São Francisco Xavier, no bairro do Caju.
Irrequieto e manso, conciliador, sem negar o enfrentamento, sempre disposto a enxergar além do óbvio, ávido por leituras, questionador, terno, cordial, sereno, Daflon está em listas seletas de muitos jornalistas com quem trabalhou. A capacidade de agregar, de estender as mãos e de duvidar dos limites foi a sua marca.
Para o jornalista e escritor José Castello, um de seus grandes incentivadores no início de carreira, Daflon representou uma conexão com uma concepção de mundo que aos poucos sai de cena:
“Em tempos tão rudes e desleais, Rogério Daflon foi um jornalista que nunca perdeu a perspectiva do humano. Não se deixou embrutecer pelo dia a dia áspero da profissão. Nunca perdeu a noção de que escrevia sobre homens e mulheres, e não sobre máquinas, ou números. Tornou-se assim uma exceção em uma imprensa que, infelizmente, se torna cada vez mais impessoal e brutal.”
Mauro Trindade, André Balocco e Rogério Daflon (Imagem: arquivo)
Nos anos 80, no curso de jornalismo da Faculdade Hélio Alonso Facha (em Botafogo), Rogério Daflon se integrou rapidamente a um quarteto inseparável com Alexandre Baçallo, Renato Lameiro e Paulo Julio Clement. Dividiram tardes e noites em aventuras e debates sobre música, literatura, futebol, aulas da faculdade – uma vasta demanda de temas que se encerravam (e começavam) em pequenos bares na zona sul carioca.
“Ali, já ficava evidente o perfil do Daflon. Ele lia sobre tudo. Era muito eloquente e dava ênfase a um olhar acolhedor aos menos abastados. Tudo nele tinha um apelo social forte.”
O relato emocionado de Renato Lameiro se acentua quando ele se recorda de outra tragédia, não muito distante. “Ficamos arrasados com o acidente com o voo da Chapecoense (em novembro de 2016, na Colômbia).”
No avião, entre tripulantes, jogadores, dirigentes, convidados e funcionários do clube, estavam vários jornalistas. Um deles, Paulo Julio Clement, outro nome marcante do jornalismo brasileiro. Para quem convivia com o quarteto, não havia como ignorar o baque emocional daquele impacto.
Em silêncio, Daflon homenageou o amigo com algumas lágrimas, tímidas, perceptíveis apenas para quem sabia que ali, na essência de sua mansidão, havia uma inquietude e um inconformismo com as inconsequências e desvios que levam o homem a cometer atrocidades.
“Ele enfrentava o poder sem perder a ternura. Era um jornalista cujo pensamento se traduzia em pautas que valorizavam a sociedade. O Daflon queria que todos avançassem e cultivava assim um jornalismo objetivo e humano”, conta André Balocco.
A amizade entre eles começou em 1993, quando cobriam o noticiário do Fluminense. Balocco, pelo Jornal do Brasil, e Daflon já em O Globo. A rivalidade intensa entre os dois jornais muitas vezes se refletia no desgaste das relações entre os repórteres.
A irmã Inês e Rogério Daflon (Imagem: Arquivo)
Mas Daflon preferia se esquivar dessa disputa paralela. “Ele buscava produzir o melhor e tentava deixar de lado ou minimizar as questões que diziam respeito à concorrência. Achava que isso era menos importante.”
Em O Globo, Daflon teve vários chefes, cúmplices nas opiniões sobre seu talento, sua capacidade profissional. Tadeu de Aguiar, na Editoria de Esportes, foi um deles no início dos anos 2000. Impressionava-o a dedicação e persistência daquele repórter que não se contentava com pautas protocolares.
“Ele mantinha a boa desconfiança do repórter, de não aceitar, de não acreditar em uma primeira versão que lhe era apresentada. Levava isso ao extremo. O Daflon trocava de trabalho, de empresa, toda hora. Queria ir mais fundo e fazia isso para não se acomodar. Além do mais, era um ser humano extraordinário.”
Pai de Beatriz (Bia) e Felipe, filhos de seu relacionamento com a jornalista Luciana Neiva, Daflon deixou um rastro de boas lembranças e ótimas reportagens, como a que lhe rendeu (em parceria com Emanuel Alencar) a 1ª edição do Prêmio ISWA, em Florença, em 2012, por uma série de artigos sobre a gestão de resíduos no Rio de Janeiro.
Em 2017, obteve outra honraria; o prêmio Direitos Humanos de Jornalismo, pela Agência Pública, com a matéria ‘O Estado devolveu meu filho morto’.
Impossível reunir todos os depoimentos surgidos a cada instante em desabafos, longos textos, declarações, áudios, vídeos de um sem-número de seus admiradores, quase todos em choque, diante da severidade implacável de uma tragédia que interrompeu precocemente sua trajetória.
Carioca, botafoguense, ele viveu 55 anos construindo a cada dia uma imagem que pontua a visão de quem o conhecia.
“Amável, gentil, discreto. O mundo precisa de mais Daflon, de outros tantos como ele. Seu apelo humanitário, sua preocupação com o próximo, sua obsessão por justiça social; tudo isso fez dele um jornalista especial, com seu texto elegante, suas convicções.”
É assim que Martha Esteves descreve o ex-colega de redação. Trabalharam juntos num curto período em O Dia e, mais recentemente, na retomada do Jornal do Brasil.
Ainda sob o efeito da perda do amigo, Martha se apega ao estilo “pacificador” de Daflon para tentar diluir a dor.
“Ele era a voz da sensatez. Não fugia das questões. Mas ensinava como lidar com problemas apaziguando os ânimos.”
Em outra demonstração de apreço, Aziz Filho não é menos arrebatador e parece conclamar todos os colegas e amigos a sorver suas palavras sobre o ex-companheiro de O Globo.
“O Dafla era o cara mais gentil do mundo. Carinhoso, solidário, parceiraço. Eu acho que sempre foi um anjo disfarçado. Pelo menos é assim que decidi pensar nele até o dia do nosso reencontro, quando voltaremos a falar mal de todo mundo, coisa que anjo, pelo menos em tese, não faz.”
Aziz e Catilce Seabra desfrutavam às vezes da companhia de Daflon, em um trio à parte que se formava na Editoria de Política do jornal. Daflon era chamado de vez em quando para se juntar à dupla.
“O Dafla era do esporte, mas adorava cobrir política. E nós adorávamos pressionar o editor de Política para convocá-lo quando tinha eleição. Sem ele não era a mesma coisa.”
Em uma profissão que afasta os profissionais por várias razões – desemprego, transferência para outro estado ou para uma nova atividade em empresas diferentes, etc. -, fica difícil atualizar os passos de cada um.
Às vezes, o contato se perde por anos. A amizade, não. Foi por isso que Marluci Martins exibiu em seu perfil em uma rede social, há poucos dias, uma foto que hoje dispensaria legenda. Basta ali contemplar o sorriso de Daflon. Ele estava entre os convidados da festa de aniversário da jornalista, 28 anos atrás.
“Fui apresentada e ele pelo Paulo Julio Clement. O Daflon era doce, de voz baixa, com aquela carinha dengosa, de sono, que sempre buscava a melhor palavra para se ouvir. Ele amenizava o ambiente, se apresentava para solucionar os problemas.”
O tempo também não aplacou a admiração e respeito entre Lédio Carmona e Daflon. Companheiros de redação, nos anos 90, cada qual tomou um rumo diferente no jornalismo. Lédio foi para a TV e os encontros com o velho conhecido ficaram escassos.
“Não o via há muito tempo. A gente perdeu o contato. Mas era um cara que eu adorava. Passava uma paz, uma aura de tranquilidade, de segurança, de fidelidade muito grande. Sem ele, o álbum da nossa vida, das nossas recordações, fica mais pobre. Parece que esse álbum está em desmanche, em plena evaporação. Esse é o meu sentimento.”
Manifestações de carinho, solidariedade à família, frases de alento e esperança surgiram neste mês de julho em velocidade e provocaram um redemoinho, uma gangorra emocional entre todos que se regozijavam com a presença de Daflon.
Todos querendo homenageá-lo. “Ele era o cara certo para as horas incertas. Sempre com muito diálogo, sabia ponderar como ninguém. Seu semblante já trazia paz por si só.” É desse modo que Alexandre Bittencourt define seu colega de Jornal dos Sports, em 1989.
O companheirismo de Daflon não era simples retórica, tampouco recrudesceu agora por causa das circunstâncias. Nada disso. Ex-diretor de Comunicação do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Claudio Motta viveu dias de angústia em 1999, ao ser demitido do Diário Popular (SP). Na sequência, quem o acolheu?
“Graças ao Daflon eu fiz o perfil de algumas modalidades para o Media Guide do COB, direcionado aos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg (Canadá, 1999). Curiosamente, por causa daquele meu trabalho, meu nome foi cogitado e depois efetivado para substituí-lo no próprio COB, quando ele largou a Assessoria de Imprensa. Sempre lhe fui grato pela ajuda naquele momento difícil. Generoso, dócil, íntegro, educado, suave … assim era o Rogério Daflon.”
Enumerar todas as suas virtudes pode ser um exercício complicado. Mas, já deu para notar, que algumas delas têm um selo de qualidade, avalizado e repetido por tantos outros jornalistas.
“Carinhoso no trato, amigo, era sempre um prazer a sua companhia. É difícil aceitar que não verei mais aquele cara desligado, que zoava de seus próprios e inacreditáveis ‘esquecimentos’. Uma vez Daflon assinou uma matéria em O Globo apenas como Rogério. Esqueceu o Daflon”, recorda-se Maurício Fonseca. Os dois trabalharam juntos em O Globo e no JB.
Em caminhadas pelo calçadão de Copacabana, às vezes em desacordo com seu peso e prometendo a si mesmo que dietas seriam bem vindas, Daflon podia conversar com a mesma desenvoltura sobre alguns de seus autores preferidos, como Dostoievsky ou Oscar Wilde, um show eventual de Gilberto Gil, de quem era fã de carteirinha, ou mesmo do último jogo do Botafogo.
Sua paixão pelo futebol tem relação direta com o período no qual trabalhou na Revista Placar. Em meados dos anos 90, teve Sergio Garcia como um de seus principais parceiros. Hoje, Serginho, assim chamado pelos amigos, é mais um a testemunhar a generosidade de Daflon e sua vocação de dar voz aos invisíveis.
“Ele sempre teve como meta profissional mostrar o lado dos desamparados. No meio da euforia olímpica, pegou uma tangente e enfocou os despejados. Um jornalista combativo, implacável, doce. Seu sonho era um mundo mais justo.”
Amigo de longa data de Daflon, Cesar Seabra, hoje diretor de Jornalismo da NSC Comunicação, também o conheceu por intermédio de Paulo Julio Clement. Por muitos anos, divertiu-se com a amizade da dupla. Caçoava deles inúmeras vezes por causa de um detalhe – o temperamento totalmente oposto dos dois.
Apesar de um coração radiante, do tamanho de sua paixão pelo Fluminense, PJ era explosivo em situações que lhe desagradavam.
“Como podiam ser amigos dois seres tão diferentes? E que amizade bonita era aquela. PJ, aquele ranzinza amável e sempre divertido. Dafla, a eterna calma com o sorriso sempre carinhoso. Fico imaginando como será o reencontro deles.”
Em uma rápida experiência pelo novo JB, que não emplacou, a repórter Malu de Melo dividiu pautas com Daflon, em 2018. Foi uma vitória conjunta. Tudo por causa do resultado das reportagens. Em depoimento no seu perfil na rede social, Malu contou sobre alguns desses episódios.
“Vibramos tantas vezes quando o produto do nosso trabalho mudou (pra melhor!) a vida de alguém. Fosse motorista de ônibus, barraqueiro da Vila Kennedy, atores circenses de favela. Fosse quem fosse. No fim do ano passado, diante de mais um calote do JB, Daflon propôs uma vaquinha para a funcionária da limpeza – desesperada pela falta de salário e 13º.”
O gesto de Daflon, acima, era espontâneo. Revela tudo o que se sabe sobre ele. Como quem destila durante toda a vida empatia, compreensão e serenidade, faltava um pequeno ajuste para o desfecho dessa sua história.
Essa tarefa coube à família, que se esforçou até o último instante para um transplante de órgãos, atitude que teve a aprovação imediata de sua mãe, dona Lia Ignes Santos Daflon Gomes, de 90 anos.
Por uma questão técnica, isso não foi possível. Mesmo diante de mais esse imprevisto, o sentimento de todos eles, incluindo-se aí sua companheira Ana Beatriz Duarte, já havia sido moldado a partir das palavras pungentes de uma de suas irmãs, Maria Lucia Daflon: “Rogério, seu coração vai continuar batendo no peito de cada um de nós. Que você saiba, Rogério, o que todos nós já sabíamos: Rogério Daflon é amor.”